Em Março de 1965 estava a um mês de completar os meus 12 anos e vivia em Lourenço Marques, Moçambique. Não havia televisão, pelo que os putos dessa altura se divertiam uns com os outros na rua, na praia (que o tempo era quase sempre convidativo) e numa ou noutra ida ao cinema. Sendo filho único, cedo desenvolvi capacidades para também me entreter sózinho em casa, a maioria das vezes rodeado de livros aos quadradinhos e de muitos, muitos discos, pois a música sempre teve uma importância fundamental ao longo da minha vida. A esmagadora maioria desses discos eram na altura de pequeno formato, os chamados 45 rotações, que eu colocava a rodar horas a fio num daqueles gira-discos portáteis, cuja tampa, destacável, era o respectivo altifalante.
O som que se desprendia daquelas rodelas pretas vinha portanto de uma única direcção - nada cá de colunas sofisticadas, isso era privilégio apenas do meu pai, orgulhoso possuidor de uma aparelhagem último modelo, emverdadeira estereofonia cujo acesso me estava, como não podia deixar de ser, quase sempre proibido. Mas eu queria lá saber daquelas novas tecnologias - o que me interessava mesmo era o portátil vermelho que colocava no chão do meu quarto para poder ouvir toda a música que me encantava: o Cliff Richard e os seus Shadows, a Connie Francis, o Adamo e a Françoise Hardy, a brasileira Celly Campello e, acima de todos, os meus adorados Beatles.
A paixão pelos quatro de Liverpool já era antiga, dois anos inteiros, e tal como a esmagadora maioria dos meus amigos, conhecia todas aquelas canções de cor e salteado, e a cada novo disquinho que aparecia repetia-se sempre a mesma correria às lojas. Coleccionávamos os discos, as letras das canções e todas as fotografias e notícias que encontrávamos dos nossos quatro heróis guedelhudos, recortando-as de jornais e de revistas, e usávamos aquelas magníficas botas “à Beatle” que criaram moda na altura. Isto sem falar da guerra constante com os nossos pais por causa do comprimento dos cabelos que teimávamos em deixar crescer.
Mas, sem televisão, apenas podíamos imaginar como é que eles andavam ou tocavam em cima de um palco. Por isso, quando se anunciou a estreia de “A Hard Day’s Night” foi toda uma ansiedade que tomou conta de mim. Aquele acontecimento único e de uma importância transcendente veio a dar-se no Teatro Manuel Rodrigues (a sala de cinema mais importante da cidade) e foi a loucura total! Devo ter vivido, nesses dias, as horas mais felizes de toda a minha meninice (e é claro que vi o filme por diversas vezes enquanto se manteve em cartaz).
Em muitas outras oportunidades regressei ao filme ao longo da vida, senão com a euforia daquela primeira vez, pelo menos sempre com uma grande e nostálgica saudade daqueles tempos. E são esses tempos fabulosos que efectivamente “A Hard Day’s Night” ainda hoje nos faz lembrar. Feito num estilo quase documental, o filme acompanha os Beatles durante um dia típico na vida do grupo (mais precisamente 36 horas), passado quase sempre a fugir dos fans, com uma série de peripécias pelo meio e sempre, sempre, com muita música à mistura. Hoje, que conhecemos todas as fases da sua fabulosa carreira, desde os princípios dos anos sessenta até ao seu desmembramento no início de 1970, é curioso constatarmos toda a alegria e despreocupação que existiam nesta altura no seio do grupo - eram tempos de puro prazer e inocência, que nunca mais seriam repetidos na história dos Fab 4 de Liverpool.
“A Hard Day’s Night” é um filme talhado à medida dos Beatles; para eles e sobretudo para todos os milhões de jovens teenagers que na altura da estreia já os idolatravam em todo o mundo (recorde-se que em princípos de 64 é a primeira digressão aos EUA - com a mítica actuação no Ed Sullivan Show - viagem que os catapultou definitivamente para a fama). Ao contrário dos intérpretes da maior parte dos primeiros filmes de rock ‘n’ roll que tinham de vestir a pele de personagens fictícias para tocarem a sua música, os Beatles não tinham necessidade de assumirem qualquer outra encarnação . Existiam pura e simplesmente. Eram apenas eles, o John, o Paul, o George e o Ringo - jovens que compunham e tocavam grandes canções. Com personalidades diferentes (cada fan tinha sempre o “seu” Beatle preferido) mas todas elas denotando um grande sentido de humor e um charme natural e cativante. Ainda não o sabíamos na altura, mas todos nós estávamos a crescer com eles.
O verdadeiro foco de “A Hard Day’s Night” é portanto o grupo. Existem quatro indivíduos no filme e cada um deles é distinto. John tem a sua perspicácia sarcástica, Paul tem aquele seu bom ar (e um avô irrequieto, “the clean old man”), Ringo tem a sua amada bateria e uma imagem de órfão solitário e George tem a candura que desarma qualquer produtor ou publicitário. Na realidade nenhum dos quatro teve de representar qualquer papel no filme - bastou terem sido iguais a si próprios. E a característica mais comum a todos eles era o “nonsense” (no estilo anarquizante de uns Marx Brothers) com que usualmente driblavam as perguntas idiotas das muitas dezenas de jornalistas ou simples curiosos que constantemente gravitavam em seu redor. Tal como na vida real.
“A Hard Day’s Night” teve uma importância crucial para que o fenómeno, a chamada “Beatlemania”, se alastrasse ainda mais por todo o mundo. E também para a carreira de Richard Lester, que dirigiu o filme. Jonathan Farren escreveu no Ciné-Rock: «Lester joga com o que à época se sabia dosBeatles, ou pelo menos com aquilo que se propalava publicamente através dos media, e com o que se exigia e se aceitava deles. Mas, é incontestável,Lester “apanhou-os”, deu-lhes uma estatura, um modo de estar, um espírito. É a insolência, perdão, o irrespeito, que governa este filme, e sem esse irrespeito, este manjar fino não existiria.»
Curiosamente descrito pela revista Village Voice como “o Citizen Kane dos filmes jukebox”, “A Hard Day’s Night” não mudou o curso da história mas ainda hoje serve na perfeição a memória de todo o entusiasmo duma época - mesmo “datado por causa do seu optimismo ingénuo”, como mais tarde se lhe referiu o próprio Lester. Com uma montagem trepidante e uma belissima cinematografia a preto e branco, o maior trunfo do filme, quer no passado quer ainda agora, na actualidade, continua a ser a excitante música com que os Fab Four entusiasmam sucessivas gerações de admiradores que continuam a descobrir, década após década, o maior grupo de todos os tempos.
Para recordar :
Comentários
Enviar um comentário